Leia aqui um trecho de "vidas precárias", de Pedro Costa:
MISTO-QUENTE
Sentado na padaria, cadeiras pretas de plástico, desconfortáveis, engorduro as mãos com o misto quente. Refresco de uva de pozinho. Parece remédio. Sob nova direção, diz a faixa. “Ruim como a antiga”. Mas é a mais barata da quadra.
Um pedinte para e tenta me vender seus sacos plásticos de lixo. Magro, alto, cabelos desgrenhados; negro. Tem a cara e o corpo da fome.
Um maço de sacos por 10 reais.
Conheço-o. Sou comprador assíduo. Sempre com histórias diferentes: filhos doentes, ele doente. Acredito em todas. Não faria o mesmo? Nas diferentes narrativas, só mantém o ex-presidiário que encontrou Jesus, seu perdão, foi salvo por ele e agora vive com ele e por ele. Também creio.
Em determinados dias aparece com um jovem que diz ter adotado. Já o vi brigando com o rapaz por desistir muito rápido após qualquer movimento que indique negação; é muito pouco convincente, dizia. Uma postagem em redes sociais que acabei de passar os olhos diria para ser mais resiliente.
Dessa vez, não tinha o dinheiro. Também não precisava de sacos de lixo. Mas nunca tenho - não gosto de andar com dinheiro na carteira - e nunca precisei dos sacos e, mesmo assim, comprava. Ao menos, dava umas moedas ou notas menores.
Na verdade, não queria ser incomodado. Não me sinto bem. Tento não fazer muito contato visual e sou seco ao falar que não me interesso pelo produto.
Ele agradece e me abençoa. Pergunta se acredito em Deus. Digo que não. Olha-me com espanto. Torno-me o degradado da relação. Pitoresco, exótico; não materialmente, mas espiritualmente. Um repugnante. “Como assim não acredita em Deus?”. É como se questionasse a si mesmo: Isso existe? Pode?
“Como pode ele pensar assim?”, penso eu. Fico puto. Passamos a nos desprezar; os olhares não negam.
Ele vira as costas e vai embora, após proferir alguns impropérios. Eu penso em outros, mas os deixo no pensamento apenas.
Volto ao lanche e ao suco de roxo. Sentia-me mal. Achava que o misto quente conseguiria livrar-me do mal-estar. “Deveria ter feito ovos mexidos em casa”.
Levanto-me. Pago. Começo a andar. Estou atrasado para o trabalho. Ultimamente, tenho estado atrasado. O início da aula está previsto para as dez. São nove e quarenta e cinco. Aperto o passo. “Qual é o tema mesmo?” Não lembro muito bem. “Alguma coisa que descamba para a crítica da sociedade”.
vidas precárias, de pedro costa
Psicólogo, mestre e doutor em psicologia e professor na Universidade de Brasília. Nascido no interior do Rio de Janeiro, morando a maior parte da vida em Minas Gerais e se autodeclarando mineiro. Passou por Goiás e Paraíba, residindo, desde 2019, em Brasília, Distrito Federal. Atreve-se a rabiscar algumas linhas de prosa e poesia nos tempos livres. Se pudesse, viveria disso. Tem um livro de poesias publicado: “Dialéticas: poesias político-afetivas” (Ape’ku, 2020).