Leia aqui dois poemas de "vestígios de ontem" de Aléxis Kiosia e Mirella Amaral:
About Last Night [12] (Aléxis Kiosia)
Minha psiquiatra atendia em casa.
Eu tinha crises de choro.
Ela me dava remédios.
Deitado na cama, chorando,
ela vinha e me dava um beijo
no canto da boca.
No email,
havia uma avaliação sobre a psiquiatra:
“ruim: não encaminha casos graves”
Camila era viva.
Estava feliz em me ver.
Micro pílulas estavam na cama,
mas não eram minhas.
Camila dizia que não eram dela.
Camila ia pra cidade,
mas eu não podia ir.
Estava doente.
Gripado.
Com muito frio.
Ela ficava triste
que eu não a acompanhava.
Minha vó explicava
que não era por mal,
só estava doente.
Quando ela saiu,
abri o Tinder
e encontrei Camila.
Ela tinha uma foto com minha mãe
e uma descrição dizendo
“abrace a morte”.
Camila voltou.
Eu não senti cheiro
e pensei na covid.
Minha irmã e minha vó
me traziam três grandes caixas de pizza,
redondas.
Duas, cheias de capelleti
e uma, cheias de guiozas.
Minha vó colocava uma das caixas
de capelleti
no meu colo.
Eu tinha uma crise de choro.
Minha irmã começava a rir
“quero ver o que você vai fazer
quando for tomar injeção”.
Minha vó tirou a caixa de do meu colo
e uma mancha de óleo amarelo
se revelou no meu cobertor roxo.
Acordei.
Cicatrizes (Mirella Amaral)
À donzela em seu tálamo gótico, coberta por cicatrizes da alma, em busca de um bálsamo inexistente.
Não ecoou o apito do barco a despedir-se no cais, e um véu de fumaça na plataforma atesta que o trem se foi, sem retorno breve.
Que desventura. O clamor por salvação foi cruelmente lançado nas chamas da desesperança.
É tarde demais para o retorno ao lar.
Nenhum olhar sondava os abismos de seu espírito, enquanto bailava com os espectros da morte.
Para os seus, era distinta, dotada de uma inteligência sombria.
Em seu leito, repousava um diário com versos inéditos, tecidos sobre abraços frios e memórias dissonantes da infância.
Que diriam os amigos ao desvendar aqueles escritos?
Passariam a vê-la como uma fada amaldiçoada, ou pior: uma feiticeira?
Havia um vulto na noite que compartilhava suas dores.
Para ele, era o espetáculo. Alguns diriam, um fetiche mórbido, uma Wandinha sensual.
Ou uma pária que deveria evitar os holofotes, para sua própria salvação.
vestígios de ontem, de aléxis kiosia e mirella amaral
Aléxis Kiosia nasceu em 1986, em Cosmópolis, interior de São Paulo e é autor do romance “Bala Sete (ou uma elaborada forma de suicídio)”. Não vive da escrita, mas sem a escrita não viveria. Mora em São Paulo com dois gatos e cinco peixes de pelúcia. Já Mirella Amaral é um dos pseudônimos do autor Edmundo H. V. Moreira, nascido em 1985 em São Paulo, autor da coletânea de contos “Poentes em damasco”. Encara a escrita tanto como embriaguez como cura e acredita que o espírito jovem é capaz de mudar o mundo. Atualmente vive em Campinas.