Leia aqui um trecho de "edifício samburá", de Arthur Marinho:
João do Divino Espírito Santo (1931-1990), Apartamento 104
Quando criança uma cigana lhe disse: esse menino há de sofrer muito. Dois dias depois seus pais morreram num incêndio doméstico.Buscado pelo tio, passou a viver numa cidadezinha no Vale do Jequitinhonha. Lá era tratado igual bicho. Dormia no chão duro, apanhava de chicote, era currado pelos primos. Aos 10 anos empreende fuga. Não se sabe como, consegue ir para a Bahia. Trabalha no que consegue. Vai juntando dinheiro aos poucos. Um dia sua casa é invadida e ele, simplório que era, tem todas as economias guardadas embaixo no colchão levadas. É obrigado a recomeçar. Desce o Brasil. Mora em Vitória, conhece o Rio. A fome o persegue. Na boleia de um caminhão, volta para Belo Horizonte, sua cidade natal, em 1952.
Começa por baixo. É gari, é garçom, é porteiro, é cozinheiro. Em todos os trabalhos é estupidamente explorado e nem se dá conta. Em nenhum consegue parar (ridiculamente feio, causa irritação em chefes e colegas. Aliás, um parêntese dentro do parêntese, ele não conhece mulher e nem nunca conhecerá). Acusado falsamente de um roubo, apanha na cadeia e amarga 2 meses numa cela que em que viviam outros cinco homens.
Apesar dos infortúnios, não se desanima. João acredita em milagres (assembleiano desde sua passagem pelo Rio de Janeiro). Pensa que lhe falta educação. Trabalha como um mouro de dia e à noite se alfabetiza. Depois, sonha mais alto: quer uma carteira assinada. Fixa-se enfim num empreguinho esquecível onde passa os áureos dias de sua vida. Não há assédios, sem chefe é amável, seus colegas são, no máximo, indiferentes. Tem uma conta no banco. As palavras da cigana parecem, agora, exatamente o que são, coisa do passado. Mas João do Divino Espírito Santo aprendera a ler há pouco e por isso não conhece a roda da fortuna. Seu Manoel, o homem que de bom grado oferecera trabalho para aquele estrupício, morre ao escorregar no banho. A empresa passa para outras mãos que não tinham o mesmo faro (se mãos podem ter faro) do dono anterior, de modo que as coisas naufragam e João se encontra mais uma vez na rua da amargura, sua tão conhecida.
Mas é um otimista. Passa fome sim, mas não esmorece. Gasta o que tem pensando em melhorar de sorte. Em 1970, já com melhor manejo das letras, empreende um curso de datilografia e surpreende aos professores, que associavam feiura com inabilidade. Bate de porta em porta procurando trabalho. Por fim, consegue colocação em um escritório perto da Praça Sete. Determinado, esforçado e persistente, pouco a pouco, vai assumindo novos postos até se tornar subassistente de almoxarifado, supremo ganho de sua esforçada vida. No dia em que planejou comemorar com os colegas o novo posto, ninguém compareceu ao bar combinado, mas isso não afetou sua relação com eles.
Em 1985 consegue finalmente comprar seu próprio apartamento, em que um observador mais atento notaria, pela qualidade e disposição dos objetos, um esforço sem sucesso de se afastar daquilo o que considerava a estética da pobreza.
Só que estamos falando de João do Espírito Santo e a história não pode simplesmente acabar. Em 1988 descobre-se vítima de uma doença degenerativa sem cura, que lhe fecha os dedos como garras. Quando pensava em requerer a aposentadoria por invalidez, uma surpresa: é falsamente acusado de surrupiar papel almaço do escritório e acaba sumariamente demitido. Sua vida parece uma repetição daquilo que já foi: cada vez mais debilitado, se sustenta por meio de bicos que já não são capazes de lhe dar maior sustento. Sua poupança vira fumaça. Retornam os dias de fome. Tem vergonha de pedir ajuda aos vizinhos. Sabe, por Alberto, um vizinho, que seu pai uma vez ganhara na loteria. Deposita suas esperanças no acaso, roga a Deus mais um milagre e é atendido: no bilhete premiado, uma bolada. Faz planos, sonha com um tratamento, quer uma mulher para sua vida. No dia seguinte iria retirar o prêmio. Antes, decidiu se esforçar para fazer um jantar especial. Enquanto esperava na cozinha, a panela de pressão explode arremessando-o longe e fazendo sua cara ser uma mistura de miolos e feijão.
edifício samburá, de arthur marinho
Arthur Marinho é mineiro de Bambuí, nascido em 1997, sob a égide do signo de Peixes, ainda que não acredite em Astrologia. Mora em Belo Horizonte, onde dá prosseguimento ao seu Doutorado em História na UFMG. Edifício Samburá é seu primeiro livro.