Leia aqui um trecho de "boy fumê", de Thiago Loureiro:
Junho, 1984.
De mãos dadas.
Nunca disse que me amava. Se disse, não escutei. Também não me lembro do momento em que deixei de segurar a sua mão. Segurar a sua mão, a mão da mãe. Há um momento na vida de um menino em que o constrangimento ganha corpo. Então, soltamos a mão dos pais. No jardim público da rua 3, foi no jardim central da cidade, quando passeávamos entre árvores centenárias, pedras portuguesas refletindo a história iluminada no âmbar das lâmpadas, vocês dois seguravam as minhas mãos, um de cada lado. Era dia de festa, aniversário da cidade, de algum santo católico, só os santos católicos são motivo de comemoração. Barracas, vendedores, música, artistas, pipoca. A mãe comia uma maçã do amor. Um doce cintilante de beleza magnífica, e inócuo, como são as maçãs. A pureza idílica das maçãs. O pai apreciava amendoim torrado, tinha gosto pelo sal. Insistiram para que eu aceitasse a maçã do amor, o amendoim, entre tantas outras coisas. Eu só queria um hambúrguer. A mãe tinha nojo, ainda tem. O pai endossava a opinião da mãe, disse que não era um bom lugar. Os carrinhos de lanches da rua 3 não inspiravam confiança. Difícil mesmo argumentar com a criança seduzida pelo cheiro do enxertado químico chamado de carne, lâminas de bacon penetrando os sentidos até um estado de redenção. E, desde então, nunca mais senti alguém segurar as minhas mãos como vocês seguraram.
Disenteria, vômitos, calafrios, febre. Com pouco mais de cinco anos, a primeira internação. Foi na Santa Casa de Rio Claro. Onde existe o catolicismo existe o pecado e onde existe o pecado existe o terror. O terror vestia avental azul. Um enfermeiro carregou a criança no colo enquanto a afastava de vocês, percorria aquele corredor assustadoramente frio, metálico e a criança se contorcia ao vê-los, a cada passo, mais distantes. Choro, medo, ranho e a cruz no corredor. Outras lembranças são evocadas. Colher era avião para a gelatina insípida de sobremesa. Dezenas de gibis da Turma da Mônica, como eu amava esses gibis. Brinquedos bonitos. Coloriam o quarto sóbrio pintado com as cores do sofrimento. E vocês, ali, se revezando para estarem comigo. O pai não bebia nessa época ou eu não percebia. Essa semana de internação foi uma das mais bonitas da minha vida. Não consigo esquecer de quando soltaram as minhas mãos e o enfermeiro me levou. Me levou para longe de vocês.
boy fumê, de thiago loureiro
Nascido a fórceps. Temporão. Filho único. Cria da dissidência. Reside no interior paulista, onde cursou doutorado em Educação, e atua como coordenador de diversidade e gênero pela Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade na Universidade Federal de São Carlos. Mediou mesas no Mix Literário – segmento literário do Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade –, integra a Antologia Retratos Pandêmicos (Questione, 2020) e é autor de Vinco (Viseu, 2021).