Leia aqui um trecho de "animal rudimentar", de Adilson Luiz Quevedo:
De longe é possível avistar o aglomerado de pequenos edifícios. Há tempo aquelas construções não recebem qualquer demão de tinta e as marcas de negrume e de bolor escorrem pelas paredes. Os dias nublados fornecem à paisagem uma atmosfera de abandono e sente-se um estremecimento lúgubre. Do bosque São Francisco, que circunda o bairro em uma das extremidades, surgem pássaros cobiçosos pelo aroma das cozinhas. As pessoas com a visão do bosque frondoso dobrado sobre duas colinas à frente do bairro — ora pontilhado por ipês amarelos, ora pelas vagens das sementeiras e, em dias de vento, pincelado pelas palmeiras — podem ainda vislumbrar o entardecer que declina atrás do arvoredo.
Em uma das janelas mais altas do aglomerado — não pela altura do edifício, mas pela geografia acidentada da cidade — avista-se com frequência um sujeito de uns cinquenta anos que, quando sai de seu estado contemplativo, diz algumas palavras e faz gestos que não podem ser compreendidos da rua. O que mais se destaca não são seus falatórios ocasionais — pois é cada vez menos raro avistar pessoas confessando suas aventuras e desventuras aos ventos, aos pássaros e às nuvens que passam por suas residências. Chama atenção a cortina colocada na fachada externa do apartamento. Aquela cortina afixada de modo incongruente pelo lado de fora, rasgada e encardida, um curativo ainda preso em uma das extremidades, esvoaçante sobre um ferimento ou um passado desconhecido.
O aposento contíguo à janela é mobiliado pela estante com uns duzentos livros, por uma máquina de escrever jamais usada, abandonada no assoalho, o armário que esconde um caos de papéis, a escrivaninha com um computador de mesa, cujo monitor de tubo ocupa boa parte do espaço, e uma impressora encardida. Nas paredes alguns desenhos ingênuos de próprio punho, o quadro de uma artista que ele apenas sabia se chamar Dan, deixado por uma amiga e que nunca voltou para resgatá-lo, e mapas remendados de viagens antigas. Após este cômodo, uma sala com o sofá-cama, uma cozinha de móveis alquebrados e um minúsculo banheiro.
Ele passou a noite em claro embriagando-se pelas ruas. Havia saído de casa com o objetivo de tomar uma boa surra; de sentir dores no corpo para recuperar a sensação de estar vivo; ser levado a um hospital qualquer onde um enfermeiro rusguento e mal-educado se referisse a ele ao menos pelo número da cama.
animal rudimentar, de adilson luiz quevedo
Adilson Luiz Quevedo é ficcionista, autor dos livros A volta ao mundo de um tal Jacob von Warburton (Impressões de Minas, 2015) e Notícias da contenda (Impressões de Minas, 2019). Graduou-se em filosofia, fez mestrado em filosofia das ciências e está concluindo doutoramento em filosofia política, tudo pela UFMG. Preparador de originais e revisor, integrou as seguintes publicações: Faça-me uma festa ou lhe roubarei os balões por Otávio Correa (Independente, 2024); Fazei de mim um humano bom (mas não agora) por Guilherme Romancini (Editora Patuá, 2024); Argamassa (14 fascículos) por Rodolfo C. Inácio (Editora Rona, 2022); Sartre e a psicologia fenomenológica da imagem por Helton L. Romualdo (Editora Fi, 2020) entre outras. Atua nas áreas de teatro e cinema como ator, roteirista e produtor. Já trabalhou de livreiro no Palácio das Artes, Cine Belas Artes e Biblioteca Estadual de Minas Gerais.